9 Abril 2009
Laith Mushtaq foi um dos dois únicos operadores de câmara independentes que fizeram a cobertura de toda a ‘batalha de Fallujah’ em Abril 2004, onde morreram 600 civis.
Passados cinco anos, ele volta a relatar os acontecimentos que testemunhou e filmou.
“O que vocês viram na TV em vossas casas reflecte apenas dez por cento da realidade. Além disso, quem está a ver aquelas imagens em casa, pode mudar de canal.
Mas nós estávamos lá no meio. Cheirávamos, sentíamos, víamos e tocávamos em tudo. Podíamos tocar nos corpos, mas não podíamos mudar de canal. Nós estávamos no próprio canal.
Quando penso em Fallujah, penso no cheiro. O cheiro deixava-me tonto. Num corpo morto há uma espécie de líquido, um líquido amarelo. O cheiro é verdadeiramente nauseabundo. Cola-se ao nosso nariz e nem conseguimos comer.
E não podemos arrancar as imagens da nossa mente, porque as vemos todos os dias: explosão, morte, explosão, morte, morte.
Depois do trabalho, sentávamo-nos e víamos bocados de carne nos nossos sapatos e sangue nas nossas calças. Mas não estávamos em condições de pensar porquê.
Lembro-me que em Abril de 2004, eu estava no escritório de Bagdade quando o meu chefe disse:”Temos informação de que os norte-americanos vão atacar Fallujah. É preciso uma equipa para ir imediatamente para lá. Quem pode ir?”
E eu disse: “ Vou eu. Eu posso lá ir.” Não hesitei um momento.
Filmar era um ‘dever’
Eu sabia que o preço a pagar era alto. Podia até ser a minha própria vida. Mas se eu tivesse medo de morrer, não poderia segurar uma câmara em qualquer sítio perigoso. Sei que hei-de morrer algum dia. Amanhã, o mês que vem, o ano que vem, ou daqui a dez anos, não sei.
Mas a questão está em eu poder morrer na cama ou poder morrer a fazer alguma coisa útil.
Fallujah era o meu dever. Tinha que mostrar a verdade às pessoas de fora do Iraque.
Pela verdade, eu transmiti o que realmente aconteceu naquelas ruas. Não há nenhuma mensagem política, só o que eu pude ver com os meus próprios olhos. Porque havia pessoas que ao falar sobre Fallujah diziam “ Não está a acontecer nada “ ou “as pessoas estão bem” e “ tudo está calmo”.
Seria óptimo que tudo estivesse calmo. Eu estaria feliz se nada tivesse acontecido. Eu filmaria essa estabilidade e mostrá-la-ia com prazer. Mas a realidade era muito diferente.
Um dia, julgo que em 9 de Abril 2004, alguém com um megafone na maior mesquita de Fallujah avisou: “ Os norte-americanos vão abrir uma passagem e as mulheres e crianças podem sair.”
Logo que ele acabou as mulheres e crianças começaram a procurar um transporte para abandonar a cidade mas quando elas iam na rua, os militares norte-americanos abriram fogo.
Há uma imagem que eu não posso esquecer. Uma velha mulher acompanhada de três crianças; eu vi-a na rua e tirei-lhe uma fotografia dela e das crianças.
Então ela disse: “Não temos nenhum homem connosco, alguém nos pode ajudar?” Muitos homens de Falluhah trabalhavam em Bagdade, e logo que a cidade foi isolada, eles não puderam voltar para as suas mulheres e filhos.
Por isso, alguns homens ajudaram-na e eu decidi filmar a cena, e sentei-me depois a fumar.
Passados dez minutos, uma ambulância desceu a estrada. Corri para seguir a ambulância e quando abriram a porta, eu vi a mesma mulher e as mesmas crianças – mas elas estavam em pedaços.
Ainda me lembro que as enfermeiras não podiam carregar o corpo da mulher porque ela estava desfeita em muitos pedaços, e as pessoas davam um salto atrás quando a viam. Então uma enfermeira gritou: “Então, ela parece a vossa mãe.”
Em iraquiano aquilo significa:” Ela podia ser a vossa mãe, por isso tratem-na como se fosse a vossa Mãe.” Todos se levantaram esforçando-se por transportar um bocado do corpo, porque precisavam de libertar rapidamente a ambulância que era necessária para outras pessoas.
“Nós ouvíamos pessoas a gritar dentro do hospital, por já não haver sedativos.
Tinham de amputar pernas sem anestésicos”
Nós estávamos com a câmara em frente do maior hospital, mas precisávamos de doze operadores de câmara para podermos cobrir tudo o que aconteceu naquele dia.
Havia cinco ou seis ambulâncias indo e vindo com mortos e feridos. Quando eu estava a filmar pessoas dentro do hospital, havia muitas outras de fora. E quando eu filmava as de fora, havia outras tantas lá dentro.
Eu e toda a equipa da Al Jazeera, sentíamo-nos paralisados. Aquilo era superior a nós. Éramos apenas dois câmaras e dois repórteres. Não chegava.
Repórteres, jornalistas de Doha e de Bagdade, e outras pessoas de Fallujah, todos continuavam a chamar-nos para filmarmos o que estava a acontecer, e as ambulâncias continuavam a vir e ir.
Nós ouvíamos pessoas a gritar dentro do hospital, porque já não havia sedativos. Tinham de cortar pernas sem mais ajudas.
Em alguns momentos, eu não podia andar mais. Sentava-me na rua a fumar. Não podia andar. Eu via o que se passava à minha volta, mas não podia andar. Khallas (chega!). Não tinha mais forças.
Cadáveres espalhados nas ruas
Mas isto faz-me lembrar os heróis de Fallujah de que ninguém fala.
Como este velho. Ele tinha uma vagoneta que todos os dias ele conduzia pelas ruas para atender as pessoas que lhe diziam que havia um morto nesta ou naquela rua, onde ninguém podia ir porque ali estava um atirador.
Então ele ia lá, parava a viatura e de joelhos rastejava até ao corpo e trazia-o para a vagoneta. Um dia ele trouxe cinco corpos.
Alguns deles tinham morrido há mais de uma semana, mas ninguém tinha ousado retirá-los. Outros, os cães tinham começado a comê-los.
Enquanto estive em Fallujah, eu sabia que cada simples movimento captado pela minha câmara não se dirigia a mim. Era para as pessoas que viviam lá dentro. E para as pessoas de fora que deviam saber o que se estava a passar. Era como um SOS.
Os norte-americanos diziam que as nossas imagens alimentavam o ódio contra eles. Mas o que eu fazia era tão só mostrar o que o exército deles fazia no terreno.
Não os odeio e não quero vingança, só desejo que eles tenham percebido o que andaram a fazer.
E às vezes eu desejo que a minha mente fosse como um computador que se pudesse formatar. Ou que pudessemos ir ao hospital para nos removerem peças da nossa memória.
Em Fallujah, havia momentos em que eu punha a câmara ao pé de um morto e sentia que estava a perder a coragem. Devido à dose de guerra que eu vi. Era como que uma overdose.
Não só para mim, mas também para a minha família em Bagdade.
Durante o mês em que eu estive em Falujah, a minha mãe passava todo o tempo a ver TV, porque ela sabia que o seu filho estava ali e sabia que aquelas imagens eram filmadas por ele. Às vezes nós não nos podíamos falar durante alguns dias.
Um dia ela ouviu a notícia de que os norte-americanos iam tentar chegar até ao centro da cidade. Ela não suportou mais. Foi aos escritórios da Al Jazeera em Bagdade e gritou: “Tragam-me o meu filho de volta!”
Eu fiquei embaraçado, mas a minha mãe é, bem, é mãe.
Na mesma altura, durante a noite, nós recebemos um telefonema do director geral da Al Jazeera. Ele quis falar com todos os elementos da equipa. O coordenador, eu, todos.
Ele disse: “Muito obrigado, gostamos muito do trabalho que vocês estão a fazer”E então disse: “Se vocês quiserem vir embora de Fallujah, nós mandaremos alguém e vamos tentar tirar-vos daí.”
Todos nós recusámos. Toda a gente quis ficar.
Porque é que nós deveríamos estar melhor do que as mulheres e crianças de Fallujah? Ninguém lhes tinha telefonado a perguntar se eles queriam ir dali embora.”
Numa declaração escrita à Al Jazeera, o Tenente-Coronel Curtis L.Hill, director das relações públicas da força multi-nacional no oeste do Iraque, negou que as forças comandadas pelos norte-americanos abrissem fogo sobre “civis desarmados”.
“As forças da coligação estavam lá para capturar os terroristas responsáveis pela morte de quatro empreiteiros norte-americanos. Não teriam disparado sobre civis desarmados ao tentarem sair da cidade.” disse ele.
Quando lhe perguntaram especificamente se tinha havido ordem de cessar fogo no dia 9 Abril, ele disse que as tropas “deixaram de avançar embora eu creia que a data foi o dia 11 Abril”.
Entrevista compilada por StephanieDoetzer
Laith Mushtaq é natural de Bagdade e juntou-se ao canal árabe Al Jazeera em 2003. Ele está agora destacado em Doha.