O principal obstáculo ao reconhecimento do direito subjetivo ao atributo personalístico era a tese, embalada por filosofia individualista, que inadimitia a cindibilidade da personalidade. Personalidade confundia-se com pessoa. Não era atributo reconhecível ex se. Não se podia destacar a ponto de ser objeto de relação jurídica.
Nos últimos tempos, entretanto, mais precisamente a partir do século XIX, assinalou-se-se incotido e imperante um elemento sociológico: a globalização, esta mútua influenciação internacional decorrente da facilidade e instantaneidade de valores e informações nos diversos campos do saber, especialmente no político e econômico.
De fato, novas tecnologias expunham a globalização de tal modo que a filosofia socializante tornou-se bandeira política mundial. Esta nova circunstância, a dizer, o injuntivo respeito à qualidade individualista no comércio interpessoal em todas as facetas (sobretudo a jurídica), como fator imprescindível à paz social, soava contraditória. Afinal, seria natural que, outrora, — quando a propriedade individual era a tônica econômica, política e jurídica, que traduzia a corporalização do poder pessoal —, a tutela da personalidade adviesse espontaneamente, coadjuvando aquele poder material na sua intensificação bem-vinda e necessária.
De todo modo, o que nos importa ao instante ponderar é que os direitos da personalidade vigem hoje como esteios cristalizadores de um dos principais fundamentos do Estado Democrático de Direito, como seja, a dignidade humana (CF, art. 1º, III).
E dentre os direitos da personalidade, um se notabiliza pela sua fundamentabilidade na viabilização do bens jurídicos fundamentais da liberdade (CF, art. 3º, I) e dignidade: o direito ao nome.
Historicamente, o nome é, por excelência, o primeiro signo personalíssimo de identificação de atributo pessoal. As Sagradas Escrituras ilustram nitidamente este aspecto em várias passagens. Por exemplo, no Livro de Daniel, Capítulo 1, versos de 3 a 7, lemos:
"Disse o rei a Aspenaz, chefe dos seus eunucos, que trouxesse alguns dos filhos de Israel, tanto da linhagem real como dos nobres, jovens sem nenhum defeito, de boa aparência, instruídos em toda a sabedoria, doutos em ciência, versados no conhecimento e que fossem competentes para assistirem no palácio do rei e lhes ensinasse a cultura e a língua dos caldeus. Determinou-lhes o rei a ração diária, das finas iguarias da mesa real e do vinho que ele bebia, e que assim fossem mantidos por três anos, ao cabo dos quais assistiriam diante do rei. Entre eles, se achavam, dos filhos de Judá, Daniel, Hananias, Misael e Azarias. O chefe dos eunucos lhes pôs outros nomes, a saber: a Daniel, o de Beltessazar; a Hananias, o de Sadraque; a Misael, o de Mesaque; e a Azarias, o de Abede-Nego." ("Et ait rex Asfanaz praeposito eunuchorum suorum ut introduceret de filiis Israhel et de semine regio et tyrannorum pueros in quibus nulla esset macula decoros forma et eruditos omni sapientia cautos scientia et doctos disciplina et qui possent stare in palatio regis ut doceret eos litteras et linguam Chaldeorum et constituit eis rex annonam per singulos dies de cibis suis et de vino unde bibebat ipse ut enutriti tribus annis postea starent in conspectu Regis fuerunt ergo inter eos de filiis Iuda Danihel Ananias Misahel et Azarias et inposuit eis praepositus eunuchorum nomina Daniheli Balthasar et Ananiae Sedrac Misaheli Misac et Azariae Abdenago".).
Interessante verificar que a primeira providência real prática foi a troca de nomes. Os "rótulos" dos jovens judeus segregados foram mudados para os nomes dos deuses do conquistador. O objetivo era simples: era mister torná-los mais babilônios. "Daniel" ("Deus é meu juiz"), seria doravante "Beltessazar" ("Bel proteja sua vida"); "Hananias ("Javé demonstra graça"), seria doravante "Sadraque" ("Ordem de aku", deus da lua); "Misael" ("Quem é o que Deus é"), seria a partir de então "Mesaque" (Quem é o que aku é"); e Azarias ("aquele a quem Javé ajuda"), passou a "Abede-Nego" ("Servo de nebo"). Todos nomes. Todos atributos, qualidades, dons.
É isto o nome. Um direito — absoluto (oponível erga omnes), impenhorável, imprescritível, inalienável, indisponível, inexpropriável, personalíssimo, público, e relativamente transmissível (CC/2002, arts. 17 e 18) — que espelha a qualidade de ser pessoa. Composto de prenome e sobrenome, o nome é, essencialmente, um direito atribuído a toda pessoa (CC/2002, art. 16). Direito da personalidade, que é dever do Estado democrático de Direito tutelar.
É de todo lembrável que o Estado democrático de Direito possui o compromisso social de realizar o direito democraticamente. O direito não pode ser encarado como mero meio de vida. O Direito é a razão de viver do Estado democrático de Direito. Ligando esta premissa principiológica fundamental a outras, com a mesma finalidade, — como: (1) a de que a família é a base da sociedade, e por isso deve ter a especial proteção do Estado (CF, art. 226); (2) a de que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (CF, art. 226, § 5º; princípio da isonomia do exercício dos direitos conjugais (CF, art. 226, § 5º), corolário imediato do princípio da igualdade (CF, art. 5º, I)); (3) a de que o entendimento jurídico de família deve prestigiar o princípio da isonomia do exercício dos direitos conjugais, compreendendo, portanto, expressamente, inclusive, a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (CF, art. 226, § 4º); (4) a de que a publicidade registral é o precípuo princípio instrumentalizador da garantia constitucional de tutela ao nome em qualquer de seus manifestações (pessoal, profissional, conjugal, pós-conjugal (CC/2002, art. 1.578) etc.), à medida que aquinhoa de publicidade erga omnes o signo identificador da pessoa —; verifica-se irrazoável a interpretação limitativa ao comando normativo do § 1º do artigo 1.565 do CC/2002.
O direito ao nome é direito público subjetivo, que subsiste justamente para restringir a ingerência do Estado aos direitos da personalidade, em direitura à realização do fundamento da liberdade, sem a qual inexiste dignidade.
O nome é a primeira expressão da personalidade. Os nubentes são livres para exercer todos os direitos bastantes à preparação da comunidade-base do Estado, a família. E nestes direitos, evidentemente, inclui-se a livre escolha, por parte dos habilitantes ao casamento, da posição dos patronímicos após o matrimoniamento, não se justificando qualquer limitação, como, v.g., a sobredita exigência de anteposição do sobrenome da nubente varoa ao do noivo.
Remarque-se, ainda, que a reconhecida liberdade de que gozam os nubentes para seleção do nome que passarão a ter após o casamento, não deflui de aplicação de regra registral. Muito ao contrário. Se esta fosse rasamente aplicável, o próprio assento matrimonial estaria limitado à opção nominal feminina (LRP, art. 70, 8º), o que é, juridicamente, um rematado absurdo, prenhe de preconceito, uma vez que, escusa-se repetir, tanto a mulher quanto o homem podem adotar o sobrenome um do outro, ex vi da convergência dos princípios da isonomia plena, e da isonomia do exercício dos direitos conjugais (CF, arts. 5º, I; 226, § 5º).
A propósito, ainda na vigência do Código anterior, copiosa jurisprudência materializou a meta constitucional da isonomia conjugal em decisões que feriam precisamente a eleição de nome na habilitação matrimonial. São paradigmáticas as conhecidas decisões da eg. Sétima Câmara Cível do TJ-MG, que, decidira, à unanimidade, na assentada de 31 de março de 2003, verbis:
"HABILITAÇÃO DE CASAMENTO – SUPRESSÃO DE SOBRENOME DA MULHER PARA INCLUIR O DO MARIDO – POSSIBILIDADE – INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 240, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO CIVIL – O artigo 240 do CC, ao estabelecer que a mulher pode acrescer aos seus o apelido do marido, implicitamente lhe faculta também substituir parte de seu sobrenome pelos do consorte. Improvimento do recurso que se impõe." (Ap. nº 000.301.731-6/00, rel. Des. Antônio Carlos Cruvinel, J. 10.Out.2003.)
"HABILITAÇÃO – CASAMENTO – SUPRESSÃO – PATRONÍMICO – ALTERAÇÃO – INTELIGÊNCIA DO ART. 240 – PARÁGRAFO ÚNICO – RECURSO IMPROVIDO – "Ao casar-se, a mulher terá a oportunidade da opção de novo NOME como casada, na conformidade do artigo 50, item 5, da Lei 6.515/77, que alterou o art. 240 do Código Civil. A opção será entre a conservação do seu NOME de solteira, ou a de, mantendo sempre o seu prenome, acrescentar-lhe qualquer, ou todos, apelidos do marido, tirando, ou não algum ou todos, apelidos da própria família e que compunham o seu NOME de solteira. (Instrução 32/79 da Corregedoria de Justiça de Minas Gerais)." (Ap. nº 000.301.137-6/00, rel. Des. Alvim Soares, J. 31.03.2003)
Como se vê, a norma do § 1º do artigo 1.565 do CC/2002 colima a liberdade e não repulsa, de modo algum, a troca ou exclusão de sobrenomes entre os nubentes na habilitação matrimonial. E nem poderia, porque o nome é expressão jurídica da personalidade, bem jurídico fundamental ao atingimento da dignidade humana. De outra parte, vem a pelo aduzir que a própria construção terminológica da prescrição legal em comento reforça essa interpretação, aliás, a única afinada aos objetivos, fundamentos, direitos e garantias constitucionais em vigor. O verbo "acrescer" comunica, desde a sua etimologia, a idéia de trazer algo novo, adicional, aditivo, complementar, acrescentador. Se os nubentes podem o mais (acrescer sobrenomes), podem certamente o menos (trocá-los ou retirá-los), eis que quem pode o mais, pode o menos, diz o revelho brocardo jurídico latino "in eo, quod plu, sit, semper inest et minus" (Paulo, Livro 110, Digesta de Legatis III).
Demais disso, remembre-se que o serviço de registro público é o único serviço estatal inteiramente comprometido com a consecução da garantia da publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos (CF, art. 236; LRP, art. 1º; Lei nº 8.935, de 1994, art. 1º). O registro público nasceu para servir à pessoa, espelhando os fatos jurídicos relativos à vida em sua dinâmica. O registro público não é mero repositório de fatos engessados nas linhas de leis escritas; é, e sempre será, o retrato fiel da vida, este grande laboratório divino de mudanças sucessivas e infinitas, a serviço do qual o direito humano justifica a sua existência, como insubstituível elemento edificante e pacificador.